Friday, January 12, 2024

Salon Kitty (1976)




 Através de toda a filmografia nazi-exploitation, o sexo é representado como uma forma de exercer poder sobre os mais fracos ou como uma exploração da decadência do poder nazista. O Terceiro Reich é retratado como um império de aparências, onde a rigidez e disciplina militar servem para mascarar a essência pervertida de seus oficiais, ao mesmo tempo que a alimenta. A Europa em guerra se torna um mercado de carne a céu aberto, onde esses homens e mulheres de farda preta e chicote encontram à sua disposição todos os corpos que necessitam para satisfazer seus desejos, sem culpa e sem punição.

Salon Kitty (1976) oferece uma alternativa a essa abordagem. Neste filme, o sexo apresenta várias facetas, às vezes repulsivo e degradante, por outras, inocente, burlesco ou simplesmente cômico. Essa complexidade, aliada a uma produção luxuosa e um elenco de respeito, coloca o filme num patamar mais alto do que a maioria dos nazi-exploitation. Para alguns, Salon Kitty não deve ser sequer encaixado no gênero, e merece ser enquadrado como um neo-decadente, ficção que inclui obras como Os Deuses Malditos (1969), Cabaré (1972) e Pasqualino Sete Belezas (1975).

Não é objetivo deste livro aprofundar no gênero neo-decadente, mas é importante notar que estes filmes são primos próximos do nazi-exploitation. A diferenciação mais vulgar entre os dois é que os neo-decadentes tem “algo a dizer”, enquanto o nazi-exploitation são - como o nome diz - filmes de exploração, feitos para faturar um trocado sobre um tema em voga.  Por mais simplista (e até mesmo pedante e preconceituosa) que essa definição possa ser, ela ajuda a compreender o que torna Salon Kitty um filme especial. Seria o longa de Tinto Brass uma sátira política ou um caça níqueis? É destinado a cinéfilos sérios ou ao público grindhouse que só quer uma dose de violência e sexo? E, mais importante, é possível que seja as duas coisas ao mesmo tempo?

Essa questão diz respeito diretamente ao cenário do filme, um bordel alemão utilizado, ao mesmo tempo, para prazer e política. Os coronéis e generais que se hospedam no Salon Kitty para uma noitada de bebida e perversão mal desconfiam que, entre aquelas paredes, sua lealdade ao regime nazista está sendo testada. Acreditando estarem protegidos pelo sigilo da alcova, eles deixam escapar não apenas os seus fetiches, mas também segredos militares que podem levá-los à corte marcial.

Apesar da sua atmosfera satírica e levemente surreal, Salon Kitty é baseado em um fato histórico, e é bastante acurado em suas linhas gerais. Na Alemanha nazista, Madame Kitty Kellerman (Ingrid Thulin) é a orgulhosa dona do bordel que dá título ao filme. Sem interesses políticos, Kitty vive para o prazer de entreter os seus clientes das formas mais variadas. O prazer não é para ela uma ferramenta política, mas um meio de vida, o que é posto em xeque com a chegada de Helmut Wallenberg (um infernal Helmut Berger) que tem planos diferentes para o bordel. Sob as ordens de seu superior Biondo (John Steiner), Wallenberg é incumbido de transformar o Salon Kitty em uma máquina de espionagem. Microfones são instalados em cada quarto para captar cada palavra dita pelos clientes. Além disso, é necessário se livrar de todas as moças da casa, substituindo-as por espiãs treinadas. 



A primeira parte da missão envolve recrutar moças por toda a Alemanha para se tornarem as novas garotas da casa. Além da beleza física, essas garotas devem ser absolutamente fiéis a Hitler, pois caberá a elas descobrir entre os seus clientes aqueles que estão planejando trair o regime nazista. Após serem recrutadas, elas precisam passar por uma série de testes, que inclui uma orgia com um batalhão de soldados e provas sexuais com pessoas deformadas e “não-arianas”. As que passam nessa etapa são enviadas para Madame Kitty, que, decepcionada pela rigidez militar demonstrada pelas garotas, decide que elas precisam de mais treinamento. Agora que aprenderam a ser espiãs, precisam aprender a ser meretrizes.

Dentre as selecionadas, destaca-se Margherita (Teresa Ann Savoy), jovem de família abastada e completamente fissurada pelo nazismo, que se torna objeto de obsessão de Wallenberg. É Margherita a verdadeira protagonista de Salon Kitty, e ela começa a questionar a filosofia nazista ao se apaixonar pelo soldado Hans (Bekim Fehmiu). Além de encontrar o amor no lugar mais improvável - a cama de um bordel - ela também encontra a monstruosidade do regime que vem seguindo, quando perde o seu amado da forma mais irônica possível.

O líder da operação, Helmut Wallenberg, é uma presença inquietante por todo o filme. Wallenberg é a epítome do personagem que usa o nazismo como um meio para os seus próprios fins. Ele faz uso da máquina de guerra do Terceiro Reich, e das informações obtidas pelas suas espiãs, para satisfazer seus fins pessoais. Seu apartamento é decorado por obras de arte confiscadas por conta de seu teor artístico, e sua esposa (interpretada por Tina Aumont) é uma escrava sem voz e sem glamour. Wallenberg é, acima de tudo, um narcisista incapaz de ser fiel a qualquer regime ou a qualquer causa. Sua presença se torna maior do que tudo, e, no terceiro ato do filme, isso se reflete no seu figurino, conforme explicitado por von Dassanowsky (2011):

Wallenberg se apresenta como o Übermensch (super-homem) nazista completo com um figurino prateado de super-herói da SS, consumindo cocaína e posando na frente de espelhos. (...) Ele enfim aparece para Margherita em outro bizarro figurino brilhante, desta vez preto e com uma longa capa preta e vermelha - uma mistura de super-vilão de quadrinhos, Drácula e um padre Católico.

A trama se apoia nesse instável tripé entre uma personagem (Kitty) que despreza o nazismo, outra (Margherita) que perde a confiança no regime, e um terceiro (Wallenberg) que o usa para o seu próprio prazer. Sustentados por este tripé estão as garotas do Salon Kitty, muitas delas pelos seus próprios arcos, o que culmina com o bombardeio em Berlim que destrói a casa e põe um fim à operação de espionagem.

Tendo sido recrutadas por conta de sua fidelidade ao Führer, essas garotas se veem de frente a uma realidade diferente. Dentro das alcovas, os oficiais do alto comando se provam figuras patéticas, como no caso do general que usa calcinha e ligas por baixo do uniforme, ou outro cuja fantasia é simular sexo oral numa baguete moldada no formato de pênis. Algumas delas são capazes de rir dessas situações, enquanto outras entram em pânico ao descobrir a verdadeira natureza daqueles homens que se declaram a nata da humanidade.



Salon Kitty não é apenas um nazi-exploitation ordinário com um orçamento maior. Trata-se da obra mais seminal e importante para o gênero, mais até do que Ilsa, She Wolf of the SS. O conceito do bordel utilizado para espionar oficiais foi reaproveitado à exaustão no gênero, de formas mais ou menos criativas, como uma ambientação alternativa aos campos de concentração. A influência mais direta foi sobre SS Girls (1977), cuja primeira metade é uma verdadeira refilmagem do filme de Brass. Outras obras como Nazi Love Camp 27 (1977) e Red Nights of the Gestapo (1977) conseguiram criar tramas mais criativas ao redor do conceito. Até mesmo o trailer falso Werewolf Women of the SS (2007) apresenta um trecho que remete aos interlúdios de Salon Kitty.

No elenco, além da presença de Ingrid Thulin e Helmut Berger (que interpretaram mãe e filho em Os Deuses Malditos) e de Teresa Ann Savoy (que voltaria a trabalhar com Tinto Brass em Calígula (1979)) é interessante notar a presença de alguns coadjuvantes que voltariam ao nazi-exploitation. John Steiner que interpreta o oficial Biondo, responsável pela criação da Operação Kitty, estrelou naquele mesmo ano em Deported Women of the SS Special Section, novamente no papel de um nazista. Tina Aumont, que faz a esposa de Wallenberg, teria uma breve mas memorável cena em Holocaust Part 2 (1980). Malisa Longo, que faz a dominatrix Helga, seria dona de seus próprios bordéis em Fraulein Kitty (1977) e Helga, la louve de Stilberg (1978). Salvatore Baccaro, que faz o homem com traços de neandertal utilizado para testar as garotas do Salon Kitty voltaria a fazer o mesmo papel em SS Girls e, mais tarde, o monstro estuprador de Beast in Heat (1977). E ainda é bom citar a ponta de Aldo Valletti, de Salò, ou os 120 Dias de Sodoma (1975)  como um dos clientes do bordel.

Com essa profusão de referências e trocas com o resto do nazi-exploitation, fica claro que Salon Kitty é uma ponte essencial entre o que foi feito antes e depois do seu lançamento. Não apenas por apresentar chavões e clichês que seriam reutilizados at nauseam, mas por mostrar que havia, sim, público cativo para esse tipo de filme. Ainda hoje, pode ser visto como cinema sério ou pornô softcore de luxo, e possui méritos em ambas as categorias.


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