Friday, December 22, 2023

O Porteiro da Noite (1974)




 Entre a gênese do nazi-exploitation com as produções que já analisamos, e sua ascensão com Ilsa, existe um filme que precisa ser devidamente dissecado para entender o subgênero. Dirigido por Liliana Cavani, O Porteiro da Noite (Il Portiere di Notte, 1974) não é um exemplar legítimo do nazi-exploitation, ou mesmo do exploitation em geral. O filme possui uma excelente produção, atores de alto escalão e foi distribuído em grandes cinemas na época. As cenas de sexo e nudez são sóbrias e não possuem grande carga erótica, e a maior parte do filme se passa depois da guerra. Enfim, um filme de guerra ‘sério’ para pessoas ‘sérias’, e que fica estranho se colocado ao lado de obras como The Beast in Heat ou Deported Women of the SS Special Section.

Há, entretanto, uma razão para esse capítulo estar aqui. O Porteiro da Noite consegue retratar o erotismo envolvido na relação entre um oficial nazista e uma prisioneira num campo de concentração de uma forma que nenhum outro filme mainstream fez antes ou depois. Esse é um conceito presente em Stalags como I Was Colonel Schultz’s Private Bitch, e foi absorvido pelo cinema nazi-exploitation posterior ao filme de Cavani, se tornando uma das características mais marcantes do subgênero. Enfim, difícil negar que filmes como Nazi Love Camp 27, onde a linha entre vítima e algoz é perigosamente tênue, não tiraram inspiração do filme de Cavani - o que deve ter parecido uma grande ironia para a diretora.

A grande força de O Porteiro da Noite é o personagem principal, Max, numa interpretação estupenda de Dirk Bogarde. Se escondendo todas as noites atrás do balcão da portaria de um hotel em Viena, Max é na verdade um oficial nazista responsável por crimes de guerra em um campo de concentração. Ao seu redor, gravitam seus ex-colegas, que usam a influência de Max para se hospedar e realizar conferências no hotel, e alguns como a Condessa Stein (Isa Miranda) e o bailarino Bert (Amedeo Amodio) também o procuram para satisfazer seu ego e impulsos sexuais. O porteiro, entretanto, não parece interessado em sexo, ou em qualquer tipo de interação humana, e só quer passar o resto de sua vida sem ser incomodado por quem quer que seja.

Max se prepara para um julgamento orquestrado pelos seus companheiros Klaus (Philippe Leroy) e Hans (Gabriele Ferzetti) a partir do qual vai ter mais que se preocupar com investigações do seu passado. Nesse momento decisivo, um casal vindo dos Estados Unidos vem se hospedar no hotel onde Max trabalha. O marido é um diretor de ópera que está viajando pela Europa junto com a tour de A Flauta Mágica de Mozart. A esposa é Lucia (a deslumbrante Charlotte Rampling), ex-prisioneira do campo de concentração onde Max serviu durante a guerra. Ao se reconhecerem no saguão do hotel, os dois relembram os tempos sombrios do Holocausto, um passado que queriam deixar para trás mais do que qualquer outra coisa.

É a partir desse momento que o filme se torna realmente brilhante e único. A trama de um ex-prisioneiro reencontrando seu captor nazista por acaso já foi feita várias vezes em filmes como Maratona da Morte (Marathon Man, 1976) e O Aprendiz (1998). Este é um recurso frequentemente utilizado por roteiristas para criar um ponto de ruptura na trama do filme, onde um criminoso de guerra que vivia escondido precisa fugir da vida que construiu após o conflito. A diferença é que na trama de O Porteiro da Noite Max não foi apenas o feitor de Lucia, mas também o seu amante. Lucia, num caso clássico da síndrome de Estocolmo, desenvolveu uma paixão doentia por Max, resultando numa intensa relação sadomasoquista no campo.



Max, que havia sido um relutante objeto de desejo para a Condessa e o estonteante Bert, perde a frieza se joga sem reservas na relação com Lucia. Os colegas de guerra de Max obviamente não ficam satisfeitos com a relação, já que bastaria uma simples denúncia da ex-prisioneira para incriminar não apenas o porteiro, mas todos eles. A situação se torna insustentável, mas Max, já incapaz de entender as consequências de seus atos, continua se entregando cada vez mais à única pessoa que ainda o faz se sentir vivo.

Liliana Cavani teve o grosso de sua educação cinematográfica no Centro Sperimentale di Cinematografia em Roma, e logo depois começou a trabalhar para o canal de TV RAI. Algumas das produções em que trabalhou nos seus primeiros anos foram Storia del III Reich (História do III Reich, 1963–1964) e La donna Nella Resistenza (A Mulher na Resistência, 1965), documentários que abordam o tema da Segunda Guerra e do nazi-fascismo. Durante a produção desses projetos, Cavani passou meses analisando quilômetros de filmagem feitas na época da guerra, para decupagem e edição dos documentários. Ela também entrevistou diversas mulheres que combateram os nazistas e que sobreviveram aos campos de concentração durante a guerra.

Essa intensa experiência sem dúvida contribuiu para a concepção de O Porteiro da Noite. O roteiro, assinado por Cavani e por Italo Moscati, com colaboração de Barbara Alberti e Amedeo Pagani, não tenta em momento algum romantizar o relacionamento entre Max e Lucia. Repare que, pouco antes de reencontrar sua ex-prisioneira, Max havia assassinado a sangue frio um amigo de longa data por achar que ele talvez prestasse um testemunho perigoso no seu julgamento. É um trabalho do qual ele não se orgulha, mas que executa de forma fria e premeditada, pois é o que deve ser feito.



Toda essa razão e frieza desaparecem quando Lucia entra em cena, transformando Max numa criatura impulsiva e incapaz de pensar nas consequências de seus atos. Também Lucia, a refinada esposa de um importante maestro clássico, se torna cada vez mais animalesca, mantida acorrentada e andando sobre quatro patas como um cachorro. É importante destacar que Lucia, ao contrário do que muitos presumem, não era judia. Ela, na verdade, foi enviada para o campo de concentração por ter um pai comunista. De acordo com Cavani, isso tornaria a personagem mais universal, e a sua decadência algo com a qual todos pudessem se identificar.

O Porteiro da Noite possui diversas cenas de flashback dando pistas a respeito do relacionamento entre Max e Lucia. Um momento perturbador é o que mostra Bert dançando balé num quarto do hotel, logo em seguida corta para o personagem interpretando o mesmo número num salão do campo de concentração no tempo da guerra. O espaço do campo é muito mais aberto e propício ao balé, ao som de Don Juan de Christoph Willibald Gluck, do que o pequeno quarto onde o personagem dança para Max.

Mas a cena mais marcante é quando Lucia canta a canção Wenn ich mir was wünschen dürfte (Se eu pudesse desejar alguma coisa) para os nazistas do campo. Este é o momento em que o filme mais evoca o imaginário nazi-exploitation através da imagem de Charlotte Rampling usando calças militares, quepe e suspensórios sobre o peito nu. Se os flashbacks anteriores já flertavam com o expressionismo, este beira o surreal, não apenas pela composição, mas também pela situação bizarra que se desenrola.

Embora seja considerado por alguns uma versão chic do nazi-exploitation, ou mesmo uma resposta ao subgênero na forma de uma trama mais refinada, O Porteiro da Noite foi feito numa época em que o gênero não estava consolidado o suficiente para gerar uma reação do tipo. O filme foi feito com intenções diferentes, que não diziam respeito ao nazi-exploitation, mas acabou se tornando uma peça importante no seu desenvolvimento.

Isso não impediu a crítica de taxar o filme de imoral e pornográfico. Na época do lançamento, Vincent Canby escreveu uma resenha cujo título era “O Porteiro da Noite é pornografia romântica”. Anos depois, o famoso crítico Roger Ebert escreveu uma crítica furiosa, alegando que O Porteiro da Noite não era nada mais do que um filme exploitation disfarçado de obra de arte.

Assim, mesmo que não tenha sido essa a intenção original, O Porteiro da Noite acabou sendo colocado na mesma categoria que muitos filmes nazi-exploitation, por conta de críticos que o consideravam obsceno demais para ser arte. Se isso é uma injustiça com a obra de Cavani ou se o filme realmente é pornografia glorificada, vai da opinião de cada um. Mas, conforme o leitor vai perceber ao virar a próxima página deste livro, os críticos que ficaram horrorizados com O Porteiro da Noite não faziam ideia do que viria a seguir.


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