Friday, December 29, 2023

Ilsa: She Wolf of the SS (1975)




 Quando o diretor diretor Don Edmonds e o produtor David F. Friedman lançaram Ilsa, She Wolf of the SS nos cinemas em 1975, o nazi-exploitation ganhou a forma e o escopo que até então lhes faltavam. Se até então os filmes do subgênero haviam sido poucos e inconsistentes, feitos para um público igualmente disperso, agora eles tinham audiência cativa, que queria ver mais filmes naquele estilo.

Guardadas as devidas proporções, Ilsa, She Wolf of the SS foi para o nazi-exploitation o que A Noite dos Mortos Vivos (Night of the Living Dead, 1968), foi para os zumbis. Filmes de mortos vivos e produções eróticas envolvendo nazismo já existiam antes dessas obras serem lançadas. Mas tanto Ilsa quanto A Noite dos Mortos Vivos foram responsáveis por enormes saltos nos seus respectivos subgêneros, tornando-os maiores, melhores e mais rentáveis.

A personagem Ilsa teve seu nome e personalidade inspirados nas criminosas de guerra Ilse Koch e Irma Grese, que, assim como sua contraparte fictícia, eram conhecidas por seu sadismo e comportamento psicótico. Ambas possuíam também coleções de objetos de pele humana, como abajures e livros encapados com a pele de seus prisioneiros. Depois da guerra, Ilse foi condenada a prisão perpétua pelo assassinato de 135 pessoas, vindo a cometer suicídio em sua cela em 1967. Grese, por sua vez, foi executada por enforcamento em 1945.

A trama de Ilsa, She Wolf of the SS se passa em um campo de prisioneiros de guerra (não judeus) onde são feitos experimentos científicos com cobaias humanas. A líder do campo é a sádica Major Ilsa (Dyanne Thorne, assustadora), cuja crueldade é rivalizada apenas por seu apetite sexual. Todas as noites, recruta homens entre os prisioneiros e os leva para cama. Aqueles que são incapazes de saciar seus desejos são castrados antes de serem enviados de volta para as suas celas.

É nesse cenário que um carregamento de prisioneiros chega, trazendo duas surpresas para Ilsa. A primeira é Anna (Maria Marx), uma garota com extrema resistência a dor física que se torna cobaia preferida da Major em seus experimentos. A segunda surpresa é Wolfe (Gregory Knoph), o primeiro homem no campo capaz de satisfazer Ilsa sexualmente. Ambos se tornam objetos de obsessão de Ilsa, enquanto os prisioneiros tecem um plano de fuga e vingança contra os nazistas.

O que coloca Ilsa, she Wolf of the SS vários patamares acima de Love Camp 7 é a forma como o filme de Edmonds faz pleno uso do cenário e momento histórico do nazismo. Enquanto Love Camp 7 poderia se passar por um filme de mulheres na prisão com apenas algumas poucas modificações, a trama de Ilsa, She Wolf of the SS não poderia se passar em nenhum outro momento histórico. Não deixa de ser uma ironia que o filme fosse ganhar duas sequências oficiais, Ilsa, Harem Keeper for the Oil Sheiks (1976) e Ilsa, Tigress of Siberia (1977), e outra não oficial, Ilsa, the Wicked Warden, que reinventaram a identidade histórica da personagem, mantendo apenas sua personalidade. Mas como a Ilsa original morre ao fim de Ilsa, She Wolf of the SS, é possível interpretar esses filmes mais como re-imaginações do que sequências.

Isso também eleva o nível de desconforto espectador, afinal de contas o experimentos praticados pelos nazistas em cobaias humanas já foram devidamente estudados e documentados. Embora Ilsa, She Wolf of the SS possua um tom camp e por vezes aventuresco, as cenas de tortura - especialmente contra mulheres - estão entre as mais grotescas que o cinema já produziu.

O roteiro de Ilsa, She Wolf of the SS é simples e funcional, e consegue balancear bem os inúmeros momentos grotescos com o desenvolvimento da história. Recheado de torturas, mortes criativas e momentos de puro sadismo, este é sim um filme de horror. É também uma comédia erótica, uma aventura de guerra e um romance BDSM. Os roteiristas Jonah Royston (que nunca mais fez nada parecido) e John C.W. Saxton (que escreveu o slasher Feliz Aniversário Para Mim (1981) e o filme de ação distópico Os Donos do Amanhã (1982)) merecem destaque por terem conseguido criar uma trama onde todos esses elementos convivem de forma coesa.



Outro aspecto que distingue Ilsa, She Wolf of the SS de outros exemplares do gênero é o cenário utilizado para representar o campo de concentração. Diferente da grande maioria dos nazi-exploitations, que faziam uso de cenas internas e cenários improvisados, Ilsa, She Wolf of the SS tinha a disposição todo o set do seriado Guerra, Sombra e Água Fresca a sua disposição. A série, que se passava num campo de prisioneiros, havia apenas sido cancelada, e o set estava prestes a ser demolido. Isso permitiu não apenas que o filme fosse rodado nele, mas também que o cenário fosse incendiado e demolido na frente das câmeras na cena final, onde os prisioneiros de Ilsa se revoltam contra seus captores.

Embora o papel de Ilsa tenha sido originalmente oferecido a Phillys Davis (que esteve em De Volta ao Vale das Bonecas, 1970) chega a ser inconcebível imaginar outra atriz que não Dyanne Thorne no papel da maior vilã do nazi-exploitation. De acordo com Thorne, que conseguiu o papel através de uma audição, o roteiro que lhe foi oferecido não incluía grande parte das cenas chocantes que foram adicionadas mais tarde - ela nem sequer imaginava que o filme incluía nudez! Atraída pela chance de interpretar uma criminosa de guerra, Thorne nunca imaginou que um personagem tão cruel pudesse se tornar um símbolo sexual - e até hoje rejeita a pecha.

O papel do heróico Wolfe é o único crédito de Gregory Knoph no cinema, e ele consegue fazer um herói simpático e interessante, especialmente por ter como sua maior arma a virilidade sobre humana que faz dele o único homem capaz de satisfazer Ilsa. Maria Marx tem uma performance forte como Anna, a prisioneira resistente a dor que se recusa a pedir misericórdia a Ilsa - prolongando assim o seu sofrimento. A imagem final da personagem, com o corpo e mente destroçados, rastejando pelo quarto para se vingar de Ilsa, é um dos momentos mais perturbadores do filme.

Dentre as vítimas, é necessário fazer uma menção oficial a Uschi Digard, que já havia dado as caras em The Cut Throats, e que aqui tem uma uma ponta como uma prisioneira nua submetida a torturas dentro de uma câmara de descompressão. 

Do lado dos vilões, Ilsa, She Wolf of the SS foi também responsável por apresentar a figura das duas asseclas de Ilsa (interpretadas por Mer McDonald e Rodina Keller), o que se tornaria uma tradição nos filmes oficiais da série. O versátil George ‘Buck’ Flower da série De Volta Para o Futuro e de diversos filmes de John Carpenter aparece aqui como um médico nazista auxiliar de Ilsa. Em meio a todo o sadismo, o filme ainda dá um jeito de ridicularizar a instituição da SS na figura de um general interpretado por Richard Kennedy, que visita o campo para inspecionar o trabalho de Ilsa, e num momento íntimo exige que ela urine nele.

Tanto Kennedy quanto George ‘Buck’ Flower e Uschi Digard voltariam à série em em Ilsa, Harem Keeper for the Oil Sheiks. Dirigido pelo mesmo Don Edmonds, o filme traz uma versão alternativa de Ilsa, empregada como capataz num harém moderno. Embora o contexto seja outro, a personagem continua a mesma, e o filme pode ser apreciado como uma aventura exploitation divertida e sem o estigma de estar ligado ao Holocausto.

Mesmo tendo sofrido novamente um destino atroz ao final de Ilsa, Harem Keeper for the Oils Sheiks, a personagem voltaria uma última vez em Ilsa, the Tigress of Siberia, desta vez como líder de uma gulag comunista na Sibéria. O filme mais fraco da série, Ilsa, the Tigress of Siberia tem ao menos o mérito de estabelecer Ilsa como uma soldada da fortuna, que se faz leal a qualquer ideologia que a permita exercitar o seu sadismo.



Aparte os três filmes oficiais da série, Ilsa teve duas outras aparições não-canônicas. A primeira foi em Ilsa, the Wicked Warden (1977), que fez parte do ciclo de filmes de mulheres na prisão do diretor espanhol Jesus Franco. Embora receba nomes como Greta ou Wanda, dependendo da versão que se assista, a personagem interpretada por Dyanne Thorne tem todos os trejeitos e perversões de Ilsa - com exceção do cabelo ruivo, que contrasta com o loiro utilizado na série oficial. Ela é carcereira em uma prisão feminina, onde também produz filmes snuff para vender no mercado negro. Dyanne Thorne já afirmou em diversas entrevistas que a personagem não tem nada a ver com Ilsa, mas é inegável que a intenção do diretor Franco foi capitalizar em cima da fama da série iniciada com Ilsa, She Wolf of the SS.

A outra aparição não-oficial de Ilsa foi no pornô americano Prisoner of Paradise (1980). Embora tendo uma trama completamente diferente de Ilsa, She Wolf the SS, o filme duas personagens chamadas Ilsa e Greta que funcionavam como versões da personagem original de Dyanne Thorne.

Dirigido por Gail Palmer e Bob Chinn, Prisoner of Paradise estrela a lenda do cinema pornô John Holmes como o marinheiro americano Joe Murrey, que, após perder sua namorada chinesa num bombardeio durante a Segunda Guerra Mundial, sofre um naufrágio e vai parar em uma ilha aparentemente deserta controlada por um grupo de nazistas. Comandadas pelo oficial Hans (Elmo Lavino, sob o pseudônimo germânica Heinz Müeller), as sádicas Ilsa (Seka) e Greta (Sue Carol). A trama faz pouco ou nenhum sentido (nazistas no Pacífico?) mas Holmes se mostra um galã competente, fazendo de Prisoner of Paradise um entretenimento razoável.

Além das sequências, oficiais ou não, não se pode deixar de mencionar a importância da figura feminina dominadora introduzida por Ilsa no nazi-exploitation. Ela gerou diversas imitações como Elsa (Malisa Longo) de Fraulein Kitty, a Dra. Ellen Kratsch (Macha Magall) de Beast in Heat, Alma (Maristela Greco) de Gestapo’s Last Orgy e Helga (Malisa Longo, novamente) de Helga, She Wolf of Stilberg. A personagem é também citada diretamente através das irmãs Krupp, interpretadas por Sheri Moon Zombie e Sybill Danning no trailer de Werewolf Women of the SS. Hoje, é impossível desvincular a personagem do nazi-exploitation, e a figura de Dyanne Thorne no uniforme da SS é a primeira imagem que vem à cabeça quando o gênero é citado.

Friday, December 22, 2023

O Porteiro da Noite (1974)




 Entre a gênese do nazi-exploitation com as produções que já analisamos, e sua ascensão com Ilsa, existe um filme que precisa ser devidamente dissecado para entender o subgênero. Dirigido por Liliana Cavani, O Porteiro da Noite (Il Portiere di Notte, 1974) não é um exemplar legítimo do nazi-exploitation, ou mesmo do exploitation em geral. O filme possui uma excelente produção, atores de alto escalão e foi distribuído em grandes cinemas na época. As cenas de sexo e nudez são sóbrias e não possuem grande carga erótica, e a maior parte do filme se passa depois da guerra. Enfim, um filme de guerra ‘sério’ para pessoas ‘sérias’, e que fica estranho se colocado ao lado de obras como The Beast in Heat ou Deported Women of the SS Special Section.

Há, entretanto, uma razão para esse capítulo estar aqui. O Porteiro da Noite consegue retratar o erotismo envolvido na relação entre um oficial nazista e uma prisioneira num campo de concentração de uma forma que nenhum outro filme mainstream fez antes ou depois. Esse é um conceito presente em Stalags como I Was Colonel Schultz’s Private Bitch, e foi absorvido pelo cinema nazi-exploitation posterior ao filme de Cavani, se tornando uma das características mais marcantes do subgênero. Enfim, difícil negar que filmes como Nazi Love Camp 27, onde a linha entre vítima e algoz é perigosamente tênue, não tiraram inspiração do filme de Cavani - o que deve ter parecido uma grande ironia para a diretora.

A grande força de O Porteiro da Noite é o personagem principal, Max, numa interpretação estupenda de Dirk Bogarde. Se escondendo todas as noites atrás do balcão da portaria de um hotel em Viena, Max é na verdade um oficial nazista responsável por crimes de guerra em um campo de concentração. Ao seu redor, gravitam seus ex-colegas, que usam a influência de Max para se hospedar e realizar conferências no hotel, e alguns como a Condessa Stein (Isa Miranda) e o bailarino Bert (Amedeo Amodio) também o procuram para satisfazer seu ego e impulsos sexuais. O porteiro, entretanto, não parece interessado em sexo, ou em qualquer tipo de interação humana, e só quer passar o resto de sua vida sem ser incomodado por quem quer que seja.

Max se prepara para um julgamento orquestrado pelos seus companheiros Klaus (Philippe Leroy) e Hans (Gabriele Ferzetti) a partir do qual vai ter mais que se preocupar com investigações do seu passado. Nesse momento decisivo, um casal vindo dos Estados Unidos vem se hospedar no hotel onde Max trabalha. O marido é um diretor de ópera que está viajando pela Europa junto com a tour de A Flauta Mágica de Mozart. A esposa é Lucia (a deslumbrante Charlotte Rampling), ex-prisioneira do campo de concentração onde Max serviu durante a guerra. Ao se reconhecerem no saguão do hotel, os dois relembram os tempos sombrios do Holocausto, um passado que queriam deixar para trás mais do que qualquer outra coisa.

É a partir desse momento que o filme se torna realmente brilhante e único. A trama de um ex-prisioneiro reencontrando seu captor nazista por acaso já foi feita várias vezes em filmes como Maratona da Morte (Marathon Man, 1976) e O Aprendiz (1998). Este é um recurso frequentemente utilizado por roteiristas para criar um ponto de ruptura na trama do filme, onde um criminoso de guerra que vivia escondido precisa fugir da vida que construiu após o conflito. A diferença é que na trama de O Porteiro da Noite Max não foi apenas o feitor de Lucia, mas também o seu amante. Lucia, num caso clássico da síndrome de Estocolmo, desenvolveu uma paixão doentia por Max, resultando numa intensa relação sadomasoquista no campo.



Max, que havia sido um relutante objeto de desejo para a Condessa e o estonteante Bert, perde a frieza se joga sem reservas na relação com Lucia. Os colegas de guerra de Max obviamente não ficam satisfeitos com a relação, já que bastaria uma simples denúncia da ex-prisioneira para incriminar não apenas o porteiro, mas todos eles. A situação se torna insustentável, mas Max, já incapaz de entender as consequências de seus atos, continua se entregando cada vez mais à única pessoa que ainda o faz se sentir vivo.

Liliana Cavani teve o grosso de sua educação cinematográfica no Centro Sperimentale di Cinematografia em Roma, e logo depois começou a trabalhar para o canal de TV RAI. Algumas das produções em que trabalhou nos seus primeiros anos foram Storia del III Reich (História do III Reich, 1963–1964) e La donna Nella Resistenza (A Mulher na Resistência, 1965), documentários que abordam o tema da Segunda Guerra e do nazi-fascismo. Durante a produção desses projetos, Cavani passou meses analisando quilômetros de filmagem feitas na época da guerra, para decupagem e edição dos documentários. Ela também entrevistou diversas mulheres que combateram os nazistas e que sobreviveram aos campos de concentração durante a guerra.

Essa intensa experiência sem dúvida contribuiu para a concepção de O Porteiro da Noite. O roteiro, assinado por Cavani e por Italo Moscati, com colaboração de Barbara Alberti e Amedeo Pagani, não tenta em momento algum romantizar o relacionamento entre Max e Lucia. Repare que, pouco antes de reencontrar sua ex-prisioneira, Max havia assassinado a sangue frio um amigo de longa data por achar que ele talvez prestasse um testemunho perigoso no seu julgamento. É um trabalho do qual ele não se orgulha, mas que executa de forma fria e premeditada, pois é o que deve ser feito.



Toda essa razão e frieza desaparecem quando Lucia entra em cena, transformando Max numa criatura impulsiva e incapaz de pensar nas consequências de seus atos. Também Lucia, a refinada esposa de um importante maestro clássico, se torna cada vez mais animalesca, mantida acorrentada e andando sobre quatro patas como um cachorro. É importante destacar que Lucia, ao contrário do que muitos presumem, não era judia. Ela, na verdade, foi enviada para o campo de concentração por ter um pai comunista. De acordo com Cavani, isso tornaria a personagem mais universal, e a sua decadência algo com a qual todos pudessem se identificar.

O Porteiro da Noite possui diversas cenas de flashback dando pistas a respeito do relacionamento entre Max e Lucia. Um momento perturbador é o que mostra Bert dançando balé num quarto do hotel, logo em seguida corta para o personagem interpretando o mesmo número num salão do campo de concentração no tempo da guerra. O espaço do campo é muito mais aberto e propício ao balé, ao som de Don Juan de Christoph Willibald Gluck, do que o pequeno quarto onde o personagem dança para Max.

Mas a cena mais marcante é quando Lucia canta a canção Wenn ich mir was wünschen dürfte (Se eu pudesse desejar alguma coisa) para os nazistas do campo. Este é o momento em que o filme mais evoca o imaginário nazi-exploitation através da imagem de Charlotte Rampling usando calças militares, quepe e suspensórios sobre o peito nu. Se os flashbacks anteriores já flertavam com o expressionismo, este beira o surreal, não apenas pela composição, mas também pela situação bizarra que se desenrola.

Embora seja considerado por alguns uma versão chic do nazi-exploitation, ou mesmo uma resposta ao subgênero na forma de uma trama mais refinada, O Porteiro da Noite foi feito numa época em que o gênero não estava consolidado o suficiente para gerar uma reação do tipo. O filme foi feito com intenções diferentes, que não diziam respeito ao nazi-exploitation, mas acabou se tornando uma peça importante no seu desenvolvimento.

Isso não impediu a crítica de taxar o filme de imoral e pornográfico. Na época do lançamento, Vincent Canby escreveu uma resenha cujo título era “O Porteiro da Noite é pornografia romântica”. Anos depois, o famoso crítico Roger Ebert escreveu uma crítica furiosa, alegando que O Porteiro da Noite não era nada mais do que um filme exploitation disfarçado de obra de arte.

Assim, mesmo que não tenha sido essa a intenção original, O Porteiro da Noite acabou sendo colocado na mesma categoria que muitos filmes nazi-exploitation, por conta de críticos que o consideravam obsceno demais para ser arte. Se isso é uma injustiça com a obra de Cavani ou se o filme realmente é pornografia glorificada, vai da opinião de cada um. Mas, conforme o leitor vai perceber ao virar a próxima página deste livro, os críticos que ficaram horrorizados com O Porteiro da Noite não faziam ideia do que viria a seguir.


Friday, December 15, 2023

Fräuleins in Uniform (1973)




 O que faz Fräuleins in Uniform (1973, também conhecido como Eine Armee Gretchen, She Devils of the SS, The Cutthroats e Fraulein Without Uniform) único dentre os nazi-exploitation? Além do fato de se tratar de uma produção suíça e de ter origens em um livro escrito por um ex-soldado alemão, o filme se destaca por fugir completamente da estrutura narrativa baseada nos Stalag. Fräuleins in Uniform é mais uma comédia erótica do que um filme de guerra. Aqui não há heróis americanos ou vítimas judias sofrendo nas mãos dos nazistas em campos de concentração. Também, ao contrário de praticamente todos os outros filmes nazi-exploitation feitos antes e depois, o roteiro não explora as crueldades cometidas pelos nazistas durante o Holocausto.Todos os personagens de Fräuleins in Uniform são alemães, em sua maioria nazistas, e o filme está mais preocupado em retratar decadência através de inúmeras cenas de sexo do que em chocar por violência explícita e torturas.

Fräuleins in Uniform foi baseado no livro Eine Armee Gretchen de Karl Heinz Helms-Liesenhoff, lançado em 1947. O livro é o primeiro de uma série de romances estrelado pelas moças do batalhão conhecido como Gretchen. Helms-Liesenhoff era um soldado alemão que fugiu para a Suíça em 1943 após ser condenado por deserção. Os livros foram redigidos durante esse exílio, com o objetivo de mostrar o quanto o serviço militar era capaz de corromper pessoas inocentes.

Mais focado no crescimento pessoal e na perda de sanidade das suas personagens, o romance foi um sucesso de vendas na época do seu lançamento. Na trama, o Dr. Felix Kuhn (interpretado no filme por Carl Möhner) é um ginecologista alemão contrário ao partido nazista. Encarregado da avaliação física de garotas voluntárias para servir no front, ele declara a maior parte delas inapta para o serviço. Mas Kuhn é logo descoberto, e como punição toda a sua família é enviada para o serviço, inclusive suas filhas. Uma vez alistadas no serviço feminino popularmente conhecido como as Gretchen, as filhas do Dr. Kuhn são apresentadas a um mundo de depravação perpetrado pelos homens e mulheres no front.

Embora as descrições sejam vívidas, o livro passa longe do erotismo cartunesco apresentado na versão cinematográfica. A diferença de intenções, mais uma vez, é clara: enquanto Helms-Liesenhoff quis fazer uma crítica à máquina de guerra nazista, a adaptação cinematográfica prefere utilizar essas perversões como um chamariz para o público interessado nas aventuras sexuais de belas e jovens mulheres.

O livro se tornou um best seller e ganhou boas críticas quando foi lançado em 1947, inclusive de jornais alemães e judeus, embora alguns não tenham ficado felizes com o retrato do front de guerra como uma espécie de acampamento dos prazeres. Apesar da polêmica - ou por causa dela - Helms-Liesenhoff logo escreveu mais duas sequências onde conta o que aconteceu com as Gretchen durante o resto da guerra.

Para alguns, o livro Eine Armee Gretchen era um relato contundente sobre o poder corruptor da máquina nazista. Para outros, era apenas um romance barato que explorava o momento mais sombrio da história alemã para apelar para o erotismo descabido - um nazi-exploitation, em suma. Assim como K-Tzenik, Helms-Liesenhoff acreditava na importância da sua obra em retratar o que realmente se passava nos bastidores do conflito. Grande parte de Eine Armee Gretchen tem bases na experiência do autor como soldado desertor do Terceiro Reich, embora muita coisa tenha sido inventada.

Em 1976, Erwin C. Dietrich transformou Eine Armee Gretchen em filme, numa produção suíça destinada ao público alemão. Embora o livro original tivesse ganhado diversas sequências, todas assinadas por Helms-Liesenhoff, o roteiro do filme se baseou apenas no primeiro romance da série, e ainda assim, só cobria as suas primeiras cem páginas.



Fräuleins in Uniform começa numa escola alemã, onde um grupo de garotas passa pela avaliação física necessária para serem mandadas para o front. Todas estão ansiosas para passar no teste, pois querem contribuir para o esforço de guerra em funções como operadoras de telefone, mensageiras e arrumadeiras. Querem também a chance de fugir de suas casas e do controle dos pais para a liberdade do front, onde podem praticar sexo livre com os soldados.

A trama do filme é bastante desconexa, e prefere amontoar cenas eróticas sem critério, em vez de contar uma história coesa. As personagens mais interessantes são as filhas do Dr. Felix Kuhn, Eva (Karin Heske) e Marga (Elisabeth Felchner) que, assim como no livro original, são enviadas contra a vontade para o front, onde precisam lidar não apenas com a guerra, mas também com a perversão generalizada do batalhão Gretchen. Na cena mais marcante do filme, Eva é ferida durante um bombardeio, e enquanto tenta se recuperar numa cabana, é estuprada por um soldado alemão desertor. Outra personagem interessante é Ulrike, interpretada pela belíssima Renat Kasché, uma jovem alemã que, depois de descobrir que tem uma doença terminal, resolve assumir o lugar de sua irmã gêmea idêntica e morrer no lugar dela na guerra.

Se não há exploração da violência e do horror, o filme não deixa a desejar no quesito nudez e sexo. É imensa a quantidade de cenas onde pessoas são pegas fazendo sexo, seja na cama ou no meio do mato, a maioria delas com personagens que não aparecem em outras cenas. Dietrich nem procura detalhar os momentos mais picantes, geralmente cortando logo que os personagens se desnudam ou quando são descobertos no ato por alguma das personagens principais.

O filme começa a se redimir nos vinte minutos finais, a partir de uma cena de batalha de tanques surpreendentemente bem feita. A história dá uma guinada quando as moças do batalhão Gretchen são feitas prisioneiras numa caverna, cabendo aos soldados alemães resgatá-las. Há também um momento poderoso, quando um soldado vindo do front se dá conta do tipo de devassidão que os seus compatriotas estão praticando enquanto tantas pessoas morrem no campo de batalha. Ainda assim é muito pouco, e considerando o fato de que a história do livro não se conclui nesse momento, mas continua o arco das garotas do batalhão Gretchen, é de se imaginar por que Dietrich não cortou boa parte das cenas inúteis que preenchem o seu filme, o que permitiria contar a história completa do romance original. 



Após seu lançamento Frauleins in Uniform foi divulgado por três anos como um filme de guerra sério. Foi apenas depois do sucesso de Ilsa, em 1976, que o filme passou a ser vendido como um nazi-exploitation. Ao ser relançado na Inglaterra e na Austrália na segunda metade dos anos 70, o título foi mudado para Fräulein Without an Uniform. Junto com essa sugestão de nudez, o filme ganhou uma campanha de marketing mais focada no erotismo do que na ação, incluindo um pôster alternativo que mostrava uma bela mulher seminua segurando uma metralhadora. Assim, o filme que nasceu antes que o nazi-exploitation se tornasse um subgênero oficial, foi incorporado a ele, embora tenha sido feito com propósitos totalmente diferentes.

Erwin C. Dietrich foi um dos maiores produtores de cinema exploitation na Europa, tendo trabalhado com lendas do gênero como Jess Franco, Fabrizio de Angelis e Antonio Margheritti. De olho no potencial mercadológico da revolução sexual do fim dos anos 1960 e começo dos anos 1970, ele produziu, dirigiu, e escreveu dúzias de filmes baratos e apelativos, alguns pobres e risíveis, outros verdadeiras obras de arte. Toda a filmografia de Dietrich foi financiada com recursos próprios, e ele também cuidava da distribuição e exibição dos seus filmes. Em seus trabalhos como diretor, Dietrich geralmente era creditado sob um pseudônimo, mas no caso de Frauleins in Uniform ele assinou a produção e direção com seu nome verdadeiro (o roteiro de sua autoria é creditado ao pseudônimo Manfred Gregor).

Fräuleins in Uniform foi seu único nazi-exploitation legítimo, mas Dietrich ainda assinaria a produção de diversos filmes de mulheres na prisão, incluindo os infames Women in Cellblock 9 (1976) e Barbed Wire Dolls (1977), ambos dirigidos por Jess Franco. O último apresenta uma carcereira sádica que entre uma tortura e outra se entretém com a leitura de Mein Kampf, a autobiografia de Adolf Hitler. É também de Dietrich a produção de Mad Foxes (1981), filme abismal que apresenta uma gangue de motociclistas neonazistas como vilões.

Tendo sido feito entre o início e a consolidação do nazi-exploitation, Fräuleins in Uniform não é uma ponte entre esse dois pontos. Com uma narrativa incomum e contendo uma ingenuidade típica de uma comédia erótica, o filme se assemelha mais a uma ilha perdida entre esses dois momentos distintos. Sua influência no subgênero vem mais da sua campanha de marketing, já que a narrativa não encontra paralelos nos filmes que se seguiram. Longe de ser um exemplar do bom cinema de guerra, ainda assim é uma curiosidade histórica e um guilty pleasure no melhor sentido da palavra.